As várias facetas do desperdício alimentar e o que esperar daqui para frente

28/05/2024 | Alimento, ESG, Fome

Quando se fala em desperdício de alimentos, em geral, apenas se pensa em
alguma das suas muitas facetas. Mas é muito importante que todos os setores
da sociedade tenham mais consciência das repercussões disso e da sua co-
responsabilidade sobre elas. Também é comum apontar essa responsabilidade
somente para o consumidor final e é bem verdade que ele é uma peça chave,
mas não a única

Entre os últimos dias 7 e 18 de novembro, a ONU realizou a COP27 (Conferência
das Partes, em sua 27ª edição) no Egito, reunindo lideranças mundiais para
discutir o atual cenário social, ambiental e econômico, e a implementação de
ações efetivas para cada setor. Pela primeira vez, os sistemas alimentares e o
seu impacto no meio ambiente ganharam destaque no evento, e no dia 15 foi
lançado o #123Pledge (#Compromisso123). Esse compromisso é uma iniciativa
da coalizão mundial Food is Never Waste, e o nome faz alusão ao Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável nº 12.3, que quer reduzir os desperdícios em 50%
até 2030.

Mas, por que será que, finalmente, esse detalhe tão importante – o desperdício
de alimentos – ganhou espaço na conferência da ONU sobre as mudanças
climáticas? Porque cada miligrama de comida que não cumpre a sua função, a
de alimentar, colabora para acelerar as mudanças climáticas. Desde o plantio
até a venda ao consumidor, cerca de um terço de toda a comida produzida no
mundo inteiro vai para o lixo. A ONU estima que 80% desse desperdício ocorra
em decorrência do manuseio, transporte e centrais de abastecimento. No Brasil,
o número de alimentos desperdiçados chegou a 27 milhões de toneladas por
ano. Se considerássemos apenas a fome que assola as mais de 828 milhões de
pessoas no mundo, isto já seria motivo suficiente para todas as empresas se
engajarem na redução do desperdício. Só no Brasil, mais da metade da
população enfrenta algum tipo de insegurança alimentar, são mais de 125
milhões de brasileiros que não fazem as três refeições diárias, e cerca de 30
milhões literalmente passam fome. Esse paradoxo não pode continuar existindo.

No nosso país, há décadas que a sociedade civil brasileira se mobiliza para
melhorar a condição nutricional daqueles que não têm acesso digno à comida.
A partir da ação individual, surgiram muitas organizações civis que
desempenham um papel louvável, mas devido à combinação de distintos fatores,
como o próprio crescimento populacional, o aumento do desemprego com
consequente piora do poder aquisitivo e das condições de vida em geral, a
pandemia global, entre outros, apenas essas iniciativas não conseguem dar
conta de mitigar a fome. Afinal, é como querer parar um vazamento de um longo
cano apenas tapando a saída, sem consertar as rupturas ao longo do caminho.

Investir no chamado ESG (estratégia que considera o meio ambiente, o social e
as pessoas) é uma condição para qualquer empresa que queira
verdadeiramente ser mais responsável. E a palavra é mesmo “investir”, pois o retorno positivo de se dar atenção a essa estratégia é imenso. Em primeiro lugar,
para o próprio negócio, pois evitam-se perdas e, consequentemente, prejuízos
financeiros, além de melhorar a percepção do consumidor, trazendo resultados
mais favoráveis em termos de reputação e de vendas. Depois, para as pessoas,
todos os stakeholders, já que os funcionários estarão mais satisfeitos, assim
como os acionistas e a comunidade em geral. E, ainda, para os que podem se
beneficiar das doações de alimentos (quando as perdas forem inevitáveis) e para
o meio ambiente, que deixará de receber toda a carga dessas perdas.

Por falar em meio ambiente, esta é uma das outras tantas razões para a tomada
de consciência e ação urgente de todos os envolvidos: segundo o PNUMA
(Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), cerca de 10% de todas
as emissões de gases de efeito estufa são geradas pela produção de alimentos.
Isso sem falar do uso intensivo e da poluição da terra e dos recursos hídricos,
além da exacerbação da perda da diversidade. O simples – e nefasto – fato de
serem jogadas incontáveis toneladas de comida no lixo todos os dias, traz
consequências desastrosas nesse sentido.

Por isso, é imprescindível que toda a cadeia de produção esteja engajada na
redução das perdas e do desperdício para a mitigação de riscos, desde o plantio
até a venda ao consumidor. Mais que estar consciente, é preciso atuar no
enfrentamento ao combate à fome e o desperdício de alimentos, e a indústria e
varejo são uma das partes para essa transformação, que deve estar cada vez
mais engajada com as questões socioambientais. Para que esses setores atuem
de maneira efetiva nesta empreitada, o primeiro passo é o foco em algumas
ações primordiais:

  1. Levantar dados para ter real noção do tamanho atual das perdas, sejam
    elas por quebra operacional, erros administrativos ou outros motivos. É
    importante que a empresa mapeie e entenda os seus processos, para
    compreender de que forma adotar práticas sustentáveis.
  2. Sensibilizar e treinar todos os times operacionais envolvidos na gestão do
    negócio – portanto, absolutamente todos os colaboradores.
  3. Implementar controles para a melhoria efetiva dos processos, tendo a
    redução das perdas e do desperdício como foco central, mas com vistas
    ao desempenho do seu papel na reversão do paradoxo entre a produção
    de alimentos e a fome e na redução do impacto negativo sobre o meio
    ambiente.

Diante desse contexto, não é possível ficar assistindo sem agir. Toda a
sociedade pode ser mais atuante. Às empresas, cabe também cuidarem da sua
co-responsabilidade socioambiental, além do próprio negócio. Vivemos em um
cenário em que é cada vez mais fundamental evoluir nas discussões sobre a
responsabilidade de práticas ambientalmente sustentáveis. Mais que respeitar o
meio ambiente, a organização acaba por seguir como um exemplo no
engajamento dessas causas, motivando funcionários, clientes, investidores e
parceiros com relação à importância da defesa de questões sociais e ambientais,
e entende que investir em uma gestão empresarial sustentável também traz
benefícios econômicos de longo prazo.

Mini Bio Alcione Pereira

Engenheira de Alimentos, Mestre em Sustentabilidade pela Fundação Getúlio
Vargas e MBA em Gestão Empresarial, Alcione Pereira é Fundadora da
Connecting Food – uma foodtech de impacto social que trabalha na gestão
inteligente de doação de alimentos excedentes. Além disso, ela é co-idealizadora
do Movimento Todos à Mesa, primeira coalizão de empresas brasileiras unidas
para a redução do desperdício de alimentos e combate à fome, atua como
consultora técnica em projetos relacionados à cadeia de suprimentos
humanitária, incluindo a redistribuição de alimentos oriundos do desperdício,
para a FAO/ONU e Ministério da Cidadania.