Em muitos âmbitos, temos visto a tentativa de resgate de comportamentos e relações antigas, ancestrais. E eu me pergunto se não será também o momento de resgatarmos essa relação ancestral nossa, dos seres humanos, com a comida, porque hoje ela é vista como mais um item da lista de compras, no mesmo nível de outras coisas que “temos que ter”, pela posse. Mas não foi sempre assim.
Após o término da 2ª Grande Guerra, o mundo passou por uma ampla crise de valores, em todos os níveis. Os anos de conflito trouxeram uma importante quebra na produção de alimentos e isso resultou numa mobilização global para voltarmos a produzir, para suprir as necessidades de um planeta fragilizado e que, agora, tinha a necessidade de se reconstruir. Nessa época, nasceram os baby boomers, responsáveis pelo aumento populacional no período pós-guerra, e era preciso dar de comer a essa gente toda. As fábricas de pólvora passaram a fabricar fertilizantes, para dar início à primeira grande revolução verde, com o intenso cultivo de alimentos e desenvolvimentos tecnológicos importantíssimos. Alguns anos depois, vimos outro enorme boom, agora na industrialização, e a publicidade gerando a revolução do consumo, influenciando a vida cotidiana e trazendo a massificação de muitos artigos, inclusive da comida. A abundância se tornou uma necessidade, mas não demos atenção para o fato de que ela também era sinônimo de excesso.
O significado do alimento se transformou, então, ao longo do século passado. E foi essa produção massiva – que teve os seus bons motivos, não há como negar – que gerou uma superprodução desnecessária. Tão desnecessária que resultou em desperdício, um dos maiores problemas da cadeia alimentícia de todos os tempos.
Aos poucos, o alimento foi comoditizado e os seus excedentes passaram a ser considerados como resíduos. Vemos isso na matriz criada pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA), a Food Recovery Hierarchy. Mas, por que não repensar essa maneira de encarar a comida que perde valor comercial? Não que esteja incorreta a Food Recovery Hierarchy. Ao contrário: ela coloca a redução dos excedentes de produção em primeiro lugar, seguida da doação do que acabar sendo gerado a mais, depois a alimentação animal, o uso como fertilizante para novos cultivos, a compostagem e apenas no final, o descarte daquilo que não é possível ser utilizado em nenhuma das opções anteriores. Mas o fato é que tudo isso pode ser visto sob outro prisma, para ressignificar e trazer humanidade a essa hierarquia, proporcionando uma verdadeira recuperação do alimento dentro de uma estratégia social. A doação, uma das formas de se fazer essa ressignificação, entra justamente no S da agenda ESG.
Por falar em ESG, não podemos deixar de fazer a associação também com a primeira letra da sigla, já que as revoluções verdes que vimos especialmente a partir da década de 1950, trouxeram o uso abusivo de pesticidas e agrotóxicos. Em última instância, e junto com o excesso de produção, isso também transformou o meio ambiente, no caso, para pior. Esses excedentes do campo, e também da indústria pouco tempo depois, tornaram-se resíduos, muito sob influência da publicidade acerca da praticidade do alimento. Ao mesmo tempo em que se queria fazer com que a comida estivesse disponível a todo o mundo, ela deixou de ser algo essencial para a manutenção da vida, para ser um bem de consumo e até de status social, no caso de alguns itens que só são acessíveis a certas classes. O final dessa história, que infelizmente está longe do fim, nós conhecemos bem: o paradoxo entre a abundância na produção de alimentos e um número cada vez maior de seres humanos sem ter o que comer.
Deixou de existir a conexão com o alimento, com a sua origem e propósito (nutrição, combustível para a vida), para passarmos a ter uma relação de consumo.
Olhando para trás, para os eventos históricos, dá para entender como e por quê chegamos aqui. Mas já percebemos que não é possível aceitar que seja assim. Ainda bem, porque é graças a esse inconformismo que muitas pessoas, empresas, organizações de todos os tipos e governos estão se empenhando em mudar o cenário do desperdício. A doação desses excedentes é um dos “comos”, é uma forma de dar um destino mais adequado aos alimentos que ainda têm o potencial de manutenção da vida. Se eles são simplesmente jogados fora, deixam de cumprir esse papel, o que é um contrassenso.
É preciso restabelecer o mindset da nutrição, do alimento como aquilo que nos permite viver e realizar. E, a partir daí, perceber que os excedentes existem por uma conjuntura comercial, mas não significa que sejam resíduos descartáveis, porque ainda são alimentos e têm que ser tratados como tal. Podem ter perdido valor comercial na cadeia, mas continuam a ter valor social, humano.